Silvester e São Silvestre

Quando estamos na Alemanha, nossas passagens de ano costumam ser assim: um frio de rachar, todo mundo na varanda, envolto em luvas e cachecóis, com uma taça de champanhe na mão, batendo os dentes, contagem regressiva até os fogos estourarem pela cidade, todos se abraçam, “Alles Gute im neuen Jahr!” e ficamos ali tiritando e vendo o céu ser tomado por chuvas brilhantes de todas as cores. Depois de dez minutos, ninguém mais aguenta e voltamos para a sala quentinha, onde mais champanhe nos aguarda e uma sopa de lentilha, para aquecer e dar sorte. Isso é Silvester.

No Brasil, é óbvio, ninguém fica tiritando na varanda. Estamos pouco abaixo do Equador, onde, sabidamente, todos andam quase pelados e suando em bicas. Eu nunca fui muito chegada a festas de arromba e só virei o ano uma única vez em Copacabana – honra seja feita, gostei. Mas minha maneira preferida de festejar a chegada do ano novo, quando estou no Brasil, é na beira de alguma praia menos visitada, de bermuda, camiseta e havaianas, com minha família e alguns amigos por perto. Sem alardes, sem grandes expectativas, com alguma tranquilidade, abraços sinceros e uma bebida gelada para matar a sede. Para mim, isso é começar o ano com o pé direito.

Este ano, porém, nem uma coisa, nem outra. Nossa viagem para a Alemanha foi justamente na noite do dia 31. Pela primeira vez, íamos passar a meia-noite longe de tudo, numa cabine de avião. Muita gente tentou nos consolar, dizendo que as companhias aéreas costumam servir champanhe ou algum extra por conta da data especial. Outros nos olhavam com uma certa compaixão. Mas nós estávamos satisfeitos, sabendo que íamos economizar uns 400 euros por pessoa escolhendo esta data. Só não contávamos com um detalhe: a chuva torrencial que assolou o Brasil em dezembro e transformou a nossa partida numa pequena aventura.

Já no dia anterior, depois de passar a manhã na praia, um temporal nos obrigou a ficar em Niterói até tarde da noite, esperando a situação nas ruas melhorar. Enquanto isso não acontecia, o carro da minha irmã enguiçou e teve de ser rebocado, deixando-a na chuva com um grupo de visitantes vindos do Nordeste para o fim de ano na cidade maravilhosa. Levei uma parte do grupo para casa no meu carro, mostrando algumas das nossas maravilhas: ruas inundadas, camuflando buracos insuspeitados, e motoristas de ônibus decididos a nos mostrar quem manda nas ruas, quer dizer, eles. Em um trecho particularmente cheio d’água, um ônibus vindo no sentido contrário e dois que nos ultrapassavam pela direita me deram a sensação de estar dirigindo sob as Cataratas do Iguaçú. Durante alguns segundos, não vimos nada além de água, muita água por todos os lados. Momentos inesquecíveis para os turistas dentro do carro, inclusive o meu alemão, que já é de casa, mas que, naquele momento, perdeu todo o bronzeado adquirido na praia.

Chuva à vista

Até aqui, estava tudo bem.

Depois de passar a tarde e parte da noite esperando a chuva estiar, lá fomos nós a caminho da ponte e da Linha Vermelha, rezando para que a água já tivesse baixado e para não encontrar pelo caminho os motoristas dos três ônibus assassinos. Chegamos sãos, salvos e secos. A chuva continuou durante toda a noite.

No dia seguinte, céu nublado, mas sem chuva, fizemos as malas e nos preparamos para sair de casa com antecedência. O caminho de casa até o Galeão não leva mais que uns 15 minutos, então saímos umas três horas antes. O que não sabíamos é que tinha começado a chover novamente no outro lado da cidade e que a Avenida Brasil estava, mais uma vez, alagada. E Avenida Brasil intransitável significa ruas interditadas na Ilha do Governador. Antes de chegar à via principal do bairro, já enxergamos o mega engarrafamento de longe. Dei meia volta e peguei uma via alternativa, mesmo não gostando da ideia de passar por uma favela e temendo os efeitos da chuva ali também. No meio do caminho, depois da favela, deparamos com um grupo de carros parados. Quando vimos alguns subindo na calçada, já sabíamos: água. E não era pouca. Um carro da polícia tentava atravessar pela calçada, também já coberta pela água. Havia três carros atolados na lama do canteiro central, depois de tentar atravessar para a pista na contramão, um deles uma picape. De cara para o mar barrento à minha frente, fiquei esperando enquanto uma outra caminhonete atravessava o aguaceiro, deixando atrás uma pequena pororoca. Quando o fenômeno acabou, respirei fundo, engatei a primeira e lá fui eu com o pé no acelerador e todos os santos ajudando, mais a torcida do marido que repetia “vai, vai , vai, vai”. Quando cheguei do outro lado e o carro continuou andando, senti falta de um pódio para subir e pegar meu troféu. Mas era cedo para isso.

Faltando uns 100 metros para pegar a rua que leva ao aeroporto, ficamos presos num trecho do engarrafamento gigante que paralisava o trânsito na Ilha. Levamos uma meia hora para sair dali, usando de todos os recursos para nos adiantar: cortar caminho pelo ponto de ônibus, subir um trecho na calçada, buzinadas, xingamentos, súplicas e a mão pela janela, com o polegar para cima, dando um “aí, valeu” a todos que nos deixavam passar. Quando finalmente entramos para o Antonio Carlos Jobim, juro que tive vontade de cantar o Samba do Avião, pois minha alma realmente cantava, embora o motivo não fosse a água brilhando, mas a pista chegando.

No fim, tudo deu certo. Carro entregue, vistoria feita sem problemas, check-in rápido, deu até tempo de comer um último pão de queijo e comprar revistas na sala de embarque. Foi a nossa corrida de São Silvestre.

O epílogo foi menos emocionante. Pegamos a conexão em São Paulo e ficamos aguardando a decolagem na pista, vendo os fogos da meia-noite pela janelinha. A tripulação anunciou uma taça de espumante como cortesia para todos os passageiros, mas devem ter calculado mal a quantidade, pois a nossa e outras fileiras vizinhas ficaram só na vontade. Foi o primeiro ensinamento do ano: não adianta ficar sentado esperando, tem que correr atrás para conseguir o que se quer. Que venha 2010!

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7 Comentários

Arquivado em Alemanha, Brasil, Hábitos, Viagem

7 Respostas para “Silvester e São Silvestre

  1. Bete, que aventura, hein? Vou repetir o que certamente já disse antes: gosto muito do seu estilo de escrever. Literário mesmo. Saboroso. Deu pra sentir na pela a confusão do trânsito, o aguaceiro e principalmente a falta do espumante! 🙂
    Feliz 2010 e tudo de bom pra você também!

    • Nossa, Fábio! Que rapidez! Mal postei e você já aqui, lendo. 😉
      Obrigada pelo comentário, fico contente que você tenha gostado e que a descrição da odisseia carioca tenha sido na medida certa.
      Também estou devendo meus parabéns pelo seu livro. Vou já passar no blog e deixar meu comentário. Abração!

  2. Marion

    Bete, que loucura! Morri de rir com o seu relato, mas acho que é fácil rir quando se lê uma narrativa bem-humorada e não foi a gente que correu todos esses riscos.

    Por aqui também rolaram causos chuvosos, e continuam rolando. Não quer parar de chover desde o Ano Novo. Dilúvio a prestações, inundações conspurcantes – sim, porque de purificadoras nada têm. A se adivinhar pelo começo, 2010 promete ser um ano interessante, como dizem os chineses.

    Ainda assim, o foguetório foi bonito, faz calor quando não chove, no fim de semana até que deu para curtir a piscina. Enquanto isso, no litoral, coisas terríveis aconteceram.

    Um grande abraço, e parabéns pelo blog, que está ficando cada vez melhor.

    Marion

  3. Flávia Saretta

    Bete, eu vi da sacada os fogos aqui em Nova Petrópolis, e no dia seguinte ficamos sabendo da tragédia no Rio. Vocês tiveram sorte. Indiana Jones! Mas precisava acabar o espumante….

  4. Pois é, Marion e Flávia, esse é o lado triste do nosso caos.
    Fico contente que tenham gostado da leitura. Vem mais por aí.
    Abraços!

  5. Isabel

    Na minha terra diz-se “O que nao mata, engorda”. Eu adaptaria no teu caso para “O que nao mata, fortalece”!
    Tendo vencido todos esses pontos de dificuldades, já pouco no futuro te irá tirar a calma…
    Ainda bem que chegaram cá saos e salvos, mesmo sem champanhe. Champanhe compras com dinheiro, saúde nao, nao é?
    Um abraco e um Bom Ano Novo,
    Isabel
    P.S. Computador novo, onde estao os tils? Desculpa, sim?

  6. Felipe Tadeu

    Todo carioca tem histórias fortes para contar sobre enchentes, apagões e tempestades bíblicas acentuadas pelo descaso das chamadas “autoridades públicas”, né Bete? Viver no Rio (olha aí, já começa no nome da cidade…) é mesmo uma grande aventura cotidiana que nos cobra coragem, paciência e, acima de tudo, responsabilidade suprema na hora de usar o voto. Quando o dilúvio passa e a arca já é escombro só, os bichos costumam se encontrar para “voltar à realidade” na base da gargalhada. (Cara, que saudade das gargalhadas que só se tem no Rio de Janeiro!!)

    Que tal contar outras histórias da tua série, Bete, do jeito cativante que você agora fez?

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