Esse caso saiu ontem no jornal de Stuttgart e achei digno de ser incluído aqui, já que trata de uma questão que é um dos primeiros motivos de discussão quando culturas diferentes se encontram: os nomes.
Na cidade de Donaueschingen, o adolescente Cihad, de descendência turca, foi ao dentista. O médico que costumava atendê-lo não estava e sua ficha foi entregue à dentista de plantão. Esta, ao ler o nome na ficha, não gostou, foi à sala de espera e perguntou ao garoto se seu nome, conhecido também com a grafia Jihad, significava mesmo “guerra santa”. O menino disse que sim e a dentista, então, recusou-se a atendê-lo, alegando que considerava seu nome “uma declaração de guerra a todos que não são muçulmanos”. O adolescente, aos prantos, ligou para o pai, que foi buscar o filho indignado e tomar satisfações com a médica. Esta, por sua vez, ficou surpresa ao ouvir que o nome tem ainda outros significados, como “esforçar-se pelo bem”, pediu desculpas, tentou contornar a situação, mas já era tarde. O caso chegou até a imprensa turca e está dando o que falar.
Acredito que nem seja preciso discutir com que direito uma dentista se recusa a tratar de alguém por causa de um nome — nenhum. Mas o que leva alguém a entrar em pânico à mera visão do nome Cihad? E como é possível que numa região onde 12,5% da população é de emigrantes, sendo que a grande maioria destes é de turcos, ainda existam pessoas totalmente desinformadas e alheias a fatos banais de uma cultura com a qual estão em contato diariamente? E que efeito um nome pode ter se usado dentro de outro contexto?
Sou capaz de apostar que a dentista do nosso caso, assim como a maioria dos habitantes na Alemanha (sejam eles de que nacionalidade forem), já comeu um dia um kebab e compra regularmente suas frutas em algum mercadinho turco a poucas quadras da sua casa. Essas lojinhas estão por todo lado, a ponto de o escritor João Ubaldo Ribeiro já ter declarado há anos, em seu livro Um Brasileiro em Berlim, que o döner é o verdadeiro prato típico alemão. Mas o contato com essa cultura de temperos diferentes tende a parar por aí, no estômago ou em algumas palavras trocadas no caixa, enquanto as compras são empacotadas. Raramente nos arriscamos a ir além e satisfazer a própria curiosidade. Se o acaso não nos oferece um contato pessoal maior, seja através de amigos, relações profissionais mais intensas ou até laços familiares, ficamos à mercê do que a imprensa propaga ou do eterno “ouvi-dizer”. Foi nessa armadilha que a dentista caiu.
E se alguém um dia disse que os olhos são a porta de entrada da alma (eis um bom exemplo de “ouvi-dizer”, pois não faço a menor ideia de quem foi o autor desta), o nome é o nosso cartão de visita e, dependendo do contexto, podemos ser bem-vindos ou bater com o nariz na porta, sem nem saber a razão. Eu, por exemplo, sempre fui Bete, assim mesmo, com T-E. No Brasil, é essa a única dúvida que surge e a única explicação que tenho que dar. Tenho uma prima que tinha exatamente o mesmo nome e sobrenome que eu, até casarmos, com a diferença de que ela era a versão T-H. Mas ambas somos Betes, ou Beths, ou Bétis, enfim, tanto faz, todo mundo entende. No contexto brasileiro, eu não preciso me explicar.
A coisa mudou de figura quando trabalhei com americanos. Quando eu dizia meu nome, a reação era um question mark estampado na cara da pessoa. Então eu explicava que era a forma curta de Elisabete e vinha um “Oh yes, Liz!”. Foi assim durante muito tempo. Para os americanos, eu era Liz, ou Elizabeth, como a atriz dos olhos azuis e a rainha. Para os alemães, o sobrenome do casamento facilitou e eu virei Frau Köninger. Mas entre amigos e familiares, eu era a Bêêête, o que sempre me dava a impressão de estar sendo chamada de beterraba (rote Bete), ou de ser simpatizante do partido comunista. Até que um amigo brincalhão teve a ideia de escrever meu nome de um jeito que os alemães conseguissem pronunciá-lo corretamente: Bätschi. Ficou horrível, é verdade, mas funcionou.
Esse problema acontece com todo mundo que não tenha a sorte de ter um nome de pronúncia, digamos, “universal”. Mesmo meu marido, que tem um nome muito fácil, no Brasil deixou de ser Alexander (pronunciado Aleksander na terra dele) e se tornou Alexandre. E até o diminutivo Alex sofreu mudanças, já que na Alemanha ele é Álex e no Brasil virou Aléx. Por isso mesmo, muitos brasileiros na Alemanha acabam optando por nomes que permitam a seus filhos circular livremente nas duas culturas, sem perguntas e encheção de saco: Stefan e Ana são os mais comuns. Paulo já complica, pois até a cidade teimam em chamar de Sao Paolo.
Há também casos em que o destino, ou seus pais, parece já colocar empecilhos para você se integrar em determinadas culturas. O garoto Cihad é um bom exemplo. E tem também nosso amigo Foti (uma abreviação do grego Fotios, que significa “luz”), que sonha em viajar ao Brasil um dia e a quem já recomendamos veementemente não usar o apelido quando se apresentar. A não ser, talvez, depois da terceira caipirinha, quando a rodada de piadas começar.
Bete, morri de rir com este teu artigo, aliás, muito bom. Quer dizer eu ri, mas com um tantinho de tristeza.
É muito triste o preconceito, resultado de falta de informação e – do medo. Conheço bem isso, e fico contente por você escrever sobre isso do modo como o faz.
Beijos,
Marion
Bete, ótimo texto, como sempre! Vou indicá-lo a outros brasileiros na Alemanha.
Nem preciso dizer que essa dentista é vítima de sua própria ignorância cultural e limitação como ser humano.
Eu mesmo sempre tenho problema com meu nome, que é gigantesco para os padrões alemães. No médico, nas seguradoras, em qualquer comunicação oficial ou burocrática, as pessoas aqui se enrolam para falar e escrever meu nome. Na maioria das vezes eu abrevio para primeiro nome + último sobrenome e faço de conta que não tenho outros nomes no meio. Mesmo assim, a pronúncia continua sendo um problema para os alemães, coitados! 🙂
Aliás, quando eu trabalhava com tradução juramentada, sempre recomendava às moças que traduziam sua documentação de casamento a jogar fora os sobrenomes de solteira e adotar somente o sobrenome do marido, porque caso contrário elas estariam condenadas a passar o resto da vida explicando o sobrenome, soletrando-o, traduzindo-o e com isso gastando um tempo precioso que poderia ser usado para coisas mais úteis ou divertidas. A maioria dizia: – Mas eu não quero deixa de ser brasileira! Ou: – Meu sobrenome é minha ligação com minha família! Bobagem. sobrenome é uma convenção que muita gente ainda teme em mitificar, idolatrar. Qualquer pessoa que se aprofunde um pouco mais na história da família percebe logo a bagunça e falta de nexo que é a transmissão do sobrenome familiar de uma geração para a outra – principalmente no Brasil.
🙂
Marion e Fabio,
Minha nossa, como vocês são rápidos! E que bom saber que tenho leitores assíduos! 🙂 Obrigada!
Fábio, eu entendo bem a situação, fiquei com três sobrenomes depois de casar e também só uso o último na Alemanha, para evitar encrenca. Mas você esqueceu de um detalhe quando deu às moças o conselho de largar o sobrenome brasileiro. Infelizmente, casamentos também se desfazem e aí é uma dor de cabeça para mudar o nome nos documentos, principalmente para quem não está no Brasil e tem que pedir novo RG, CPF, habilitação, título de eleitor, etc. O meu continua durando, graças a Deus! Mas hoje em dia, se alguém me pede conselho, eu recomendo ficar com o nome de solteira mesmo que é menos um abacaxi na vida! 😉
Como sempre, um texto ótimo e gostoso de ler. Eu fiquei com o sobrenome de solteira. De tanto casa, descasa, me enchi de trocar toda documentaçao. Tive sorte: sou Müller de solteira e casei com alemao. Ficou elas por elas.
Agora, a dentista… well, vai ser preconceituosa assim no Ira (com til). Ou no Afeganistao, quem sabe. Affe!
Oi, Bete.
Sem falar que a dentista, além de preconceituosa, nem se lembrou que o coitado do guri não escolheu o próprio nome, né?
Eu, por exemplo, vou processar meus pais por terem me dado um nome tão suscetível a brincadeiras. (Pra quem não me conhece, estou brincando, tá?)
Bete, adoro o seu texto e já estava tristinha de passar por aqui e não encontrar nada de novo.
Escreva mais, escreva mais.
Ah, o meu nome na Itália…E na Alemanha, então..
Nem precisa sair daqui, pra dizer a verdade. Desisto.
Beijo, Risole, ops…Roseli 🙂
Ê Rolesi, ops, quer dizer, Roseli! 😉
Que bom saber que você está gostando da leitura! Mas sabe que eu imaginava que seu nome não teria problemas na Itália? E na Alamenha, quer dizer, Alemanha também acho que não seria muito complicado. Talvez incomum, mas acho que pronunciariam até direitinho.
E Renate, você deu sorte mesmo. Com um E no final e um Müller depois, a camuflagem é perfeita! É quase como se eu me chamasse Joaquim e fosse morar em Portugal. 😉
Obrigada pelo incentivo, vou me esforçar para escrever mais.
Com tantas possibilidades profissionais à frente, por que não … escritora?
Amei!