Nós e o contexto

Todo bom tradutor sabe o quanto o contexto é importante para o serviço sair bem feito. Mas  vocês já ouviram falar também de culturas de “alto” ou “baixo contexto”?

Outro dia, durante um serviço como intérprete nas negociações entre empresários brasileiros e alemães, eu ouvi da boca de um brasileiro uma frase que me deixou matutando sobre certas premissas que se aprendem por aí em cursos de comunicação intercultural. Depois de muito vai-e-vem e de ter finalmente esclarecido alguns mal-entendidos que estavam dificultando a realização de um projeto, o engenheiro brasileiro vira-se para os companheiros do seu grupo e diz: “Mas por que é que não disseram isso logo? Teriam evitado a confusão.”

Um comentário, a meu ver, muito natural e bem a meu gosto. Mesmo assim, confesso que achei a situação um pouco inusitada. Ele queria que os alemães, justamente eles, que têm fama de ser impiedosamente diretos até a medula, tivessem dito algo de cara, sem rodeios, logo no início das negociações. O que tinha saído errado?

Pensando nisso, lembrei de uma coisa chamada high context ou low context culture. É um dos aspectos levantados nos estudos do antropólogo Edward Hall, que já citei aqui antes – nota-se que me interessei pelo assunto. Pois bem, Hall aborda a ideia de cultura partindo do conceito de comunicação. Para ele, cultura seria “um sistema que existe para gerar, transmitir, guardar e processar informação” e, portanto, a comunicação seria “o fio da meada que atravessa todas as culturas” (tradução livre minha de um trecho citado em alemão no livro de Michael Schugk).

Dentre outros aspectos, como a história dos policrônicos e monocrônicos no outro post, ele define culturas que têm formas distintas de se comunicar. As chamadas culturas de “baixo contexto” levam esse nome porque dão menos importância ao contexto, que, para Hall, é toda e qualquer informação que acompanha a mensagem — desde o espaço físico e as condições climáticas até experiências passadas. Nesses grupos, prevalece a comunicação verbal direta, explícita, linear. Nas suas observações, é aqui que ele enquadra os alemães.

Nós, brasileiros, ficamos no grupo das culturas de “alto contexto”. Nossa comunicação é circular, enviamos mensagens mais cifradas, esperando o retorno para mandar mais uma peça do mosaico que vai se formar no fim da conversa. Isso quando não paramos antes, já intuindo o resto da informação a partir do contexto. Não chegamos a ser tão exímios nessa arte quanto os asiáticos, mas temos uma forte tendência a deixar certas coisas implícitas e não exprimir tudo necessariamente em palavras.

O que eu suponho ter acontecido nas negociações que presenciei é simples: treinamento intercultural é algo muito comum na Alemanha quando funcionários são preparados para o contato com parceiros estrangeiros. Há cursos para sugerir estratégias de como se sair bem dentro dos novos parâmetros culturais. Posso bem imaginar o gerente de projeto alemão fazendo o possível para se controlar e não espantar o cliente com frases como “não vai dar”, “não fazemos isso”, “tivemos um problema e vamos atrasar a entrega”, ou  “só se vocês pagarem o dobro”. De tanto tentar fazer a coisa certa, ele acabou se enrolando ainda mais.

Acontece que nossos profissionais também já se internacionalizaram e aprenderam a negociar sem grandes rodeios. Quando lidam com alemães, esperam um comportamente objetivo, acreditam que o que está sendo dito é 100% confiável e nada ficou faltando. Daí a decepção do nosso engenheiro lá no começo.

Mas também pode ser que essa imagem do brasileiro cheio de dedos seja coisa do passado, ou nunca tenha sido realidade. Pessoalmente, sempre achei que generalizar é mau negócio. O alemão disciplinado, o brasileiro bom de bola, o inglês pontual, o argentino arrogante, tudo isso são etiquetas que podem dar boas piadas, mas raramente ajudam a compreender realmente as diferenças culturais que encontramos. Fato é que o mundo está ficando muito complicado.

E quem deixou isso aqui hoje fui eu de novo, a Bete.

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5 Comentários

Arquivado em Comportamento, Comunicação, Cultura, Uncategorized

5 Respostas para “Nós e o contexto

  1. Flávia Saretta

    Bete, não consegui localizar a menção anterior ao Edward Hall… Esse teu texto dá muito pano pramanga. Dá vontade de sair lendo, pesquisando.

    • Oi Flávia,
      eu testei o link que incluí no post (onde eu digo que já falei sobre Hall antes) e funcionou, mas você também pode acessar o post pela lista de tags à direita. Se você clicar no nome Hall, vão aparecer os dois posts onde mencionei o trabalho dele.
      Comunicação intercultural é realmente um tema fascinante. Descobri muita coisa lendo a respeito e acho importante refletir sobre como podemos nos entender melhor, levando em consideração as nossas diferenças e sabendo de onde elas vêm.

  2. Flávia Saretta

    Bete, já que falaste em Antropologia, dá uma olhada no blog do meu colega Rafael: http://rafaeljosesantos.blogspot.com/
    Flávia

  3. Oi Bete,
    Gostei muito de seu artigo mas devo discordar na questão referente aos brasileiros. Participo freqüentemente de negociações interculturais e percebo claramente que sim, a maioria dos negociadores brasileiros têm dificuldade de se expressarmos diretamente.
    Ludmila

    • Oi, Ludmila.
      Antes de mais nada, devo me desculpar por não ter logo aprovado seu comentário. Ele chegou numa fase em que eu mal conseguia dar conta do trabalho diário e acabou passando despercebido. Estou voltando hoje ao blog, pela primeira vez depois de meses, e encontrei seu comentário. Enfim, desculpe.
      Quanto ao que escreve, agradeço e concordo. Minha intenção com o artigo não era afirmar que os brasileiros já não pertencem às culturas de alto contexto, mas apenas chamar a atenção para a complexidade do tema da comunicação intercultural. Por mais que possamos nos preparar, conhecendo os padrões de comunicação das diferentes culturas, é preciso estar sempre atento às particularidades de cada caso. Com o aumento dos investimentos estrangeiros no Brasil, o crescimento das próprias empresas brasileiras, cada vez mais presentes no mundo, e a quantidade cada vez maior de brasileiros com experiência de vida no exterior, há sempre a possibilidade de encontrar aqueles seres “híbridos”, que acabam agindo de forma atípica para a nossa cultura. Mas não há dúvida que a comunicação no Brasil é muito mais indireta do que em culturas como a alemã.
      Obrigada por participar e espero que o meu longo silêncio não tenha afastado você para sempre.

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