O cenário é um saguão de hotel em São Paulo. Na área reservada para computadores e mesas de trabalho, estão sentados dois árabes, um brasileiro e uma intérprete, também brasileira, a julgar pelo sotaque. Um dos árabes fala inglês com a intérprete, que traduz para e do português. O outro árabe só fala diretamente com o parceiro.
A cena é corriqueira, aparentemente uma negociação entre parceiros de negócios. Mas da forma que a presenciei seria um bom exemplo do como um intérprete NÃO deve atuar. O inglês da moça parecia bom, pelo menos a pronúncia era excelente. Só que corriam diálogos mais ou menos assim:
Brasileiro: Eu tenho certeza absoluta que discuti essa cláusula do contrato durante a nossa primeira conversa.
Intérprete: He said he mentioned this during your first conversation.
Árabe (depois de uma discussão em árabe com seu parceiro e com semblante irritadíssimo): We had agreed on 10%! It was never said there would be any other taxes!
Brasileiro: O que foi que ele disse?
Intérprete: Que vocês estão cobrando mais do que combinaram.
E por aí vai. Dava para fazer aqui um exercício aberto, do tipo “descubra os sete erros nessa cena”. Eu estava tentando ler meus e-mails em um computador ao lado, mas cada vez que ouvia mais um “ele disse que você disse”, tinha vontade de levantar e ir lá perguntar se podia ajudar.
Não é que eu me ache uma ótima intérprete. Pelo contrário, sofro de uma insegurança crônica que só consigo controlar enquanto estou trabalhando. Antes e depois, eu sou uma caixinha de perguntas, dúvidas eternas e autocrítica. Por isso mesmo, essa cena, que vi há meses, não me sai da cabeça e ilustra muito bem tudo o que pode dar errado se você não fizer o serviço direitinho durante uma negociação.
Talvez aquele árabe não ficasse tão irritado se as respostas às suas perguntas tivessem o mesmo tom e, acima de tudo, exatamente o mesmo conteúdo das respostas dadas pelo brasileiro. Vai ver as tais taxas extras sumiram já durante a interpretação das negociações anteriores.
Outra coisa que me chamou a atenção foi o evidente desinteresse da moça pelo que estava se passando ali. Enquanto os três homens tinham o olhar desperto e estavam sentados bem próximos da mesa, sinalizando contato com os gestos, ela estava recostada na poltrona e mal movia a cabeça quando falava com um ou outro. Talvez eu esteja errada, mas acredito que a postura do intérprete também influencia o resultado e linguagem não-verbal faz parte da mensagem. Não basta o cabelo arrumadinho e a roupa certa, se o corpo e os olhos estão dizendo “acabem logo com isso que eu quero ir para casa”.
Mas é possível também uma outra versão da história. E se a moça nem for intérprete profissional? E se aquilo era um trabalho voluntário? Ou, pior, se tiverem dito a ela que seria coisinha pouca e passado a conversa para ela fazer um precinho camarada? E se ela estivesse ali se sentindo enganada, presa numa armadilha da qual não podia mais sair? Acontece também, não é? Já estive em situações assim, mas tenho o mau costume de querer fazer as coisas direito, mesmo sendo mal paga. Mas cliente que não vê a importância do intérprete para o sucesso da negociação, talvez mereça mesmo levar para casa umas pragas rogadas em bom árabe!
Oi Bete,
Muito pertinente os comentários nesse último parágrafo. Da maneira como você explicou a situação, a impressão que fica é essa mesma. A funcionária está lá na empresa, ou é uma amiga que fala inglês, ou qualquer coisa assim, e pediram a ela que fosse “dar uma força”. Outra dica, da próxima vez que estiver presente a um acontecimento desses, pegue o seu blackberry e filme! Só para o deleite dos amigos, claro! 😉
beijos e escreva mais!!!
Também não sou imtérprete, Bete, mas me diverti muito com o teu artigo. Fazia tempo que você não escrevia, né? Welcome back.
Abraços, Marion
Bete, ótimo texto! Realmente, acredito q a tradutora/intérprete não adotou uma postura profissional e acabou prejudicando ambas as partes. (Na verdade, o mercado mais carente de profissionais éticos, competentes, sérios e responsáveis hoje é o de tradução: infelizmente, há muito amadorismo por aí)
Candice, obrigada! Que bom que você gostou e que bom ver gente nova por aqui! Você tem razão, eu diria até que o que a gente vê muito por aí é falta de seriedade, no bom sentido (não estou falando de tradutores sisudos). Eu podia sair divagando sobre isso, mas vou deixar para escrever em outro post.
Marion, é verdade, andei sumida por total falta de energia nos neurônios, que andavam muito ocupados com mil e um problemas. Mas estou voltando à ativa e é muito bom ver que vocês não me esqueceram! 🙂
André, essa história de “dar uma força” a gente conhece, não é? Você e a Candice me deram ideia para um novo post, daqui a pouco sai do forno. São as nossas conversas entrando no ar!
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