Isso era para ser uma resposta aos comentários da Candice e do André no último post, mas achei que merecia um espaço maior. A Candice comenta que “infelizmente, há muito amadorismo por aí” e o André levanta a hipótese que a intérprete do nosso caso talvez tivesse sido vítima da típica situação de quem vai “dar uma força” para um amigo ou colega.
Concordo com as opiniões, mas acho que tem mais coisa nisso. Acredito que tudo depende de como você encara o que faz na vida, seja a sua profissão ou qualquer outra coisa. O que falta, geralmente, é seriedade, no bom sentido.
Não estou falando de tradutores sisudos, ou gente mal humorada. Também não estou falando de perfeição, até porque conheço pouca gente tão desligada e capaz de cometer erros como eu. Nem estou falando de não correr riscos e só seguir caminhos que você já conhece. Seria a última pessoa a criticar quem se arrisca a enveredar pelas trilhas da tradução ou interpretação sem ter formação na área, já que eu mesma não a tenho.
Estou falando de levar a sério aquilo você resolve fazer, seja um pãozinho de queijo para o café ou a tradução de um contrato. Estou falando de tentar fazer o melhor que você é capaz, mesmo sabendo que não vai ser perfeito. E estou falando de dar valor àquilo que você (e os outros) fazem.
Um exemplo: a primeira tradução da minha vida foi feita “dando uma forcinha” para um amigo. Ele era poeta, ia publicar um livrinho e queria que eu o ajudasse a traduzir trechos de um texto em alemão que ele pretendia citar na sua introdução. Eu topei porque era meu amigo. Levamos mais de um mês trabalhando juntos naquilo. A mulher dele, alemã, nos ajudou. Eu acabei até lendo mais coisas do tal autor alemão, para saber mais sobre ele e entender melhor o que estávamos fazendo. A gente batalhou, se divertiu, não ganhamos nada com aquilo, mas terminamos todos felizes e satisfeitos com o resultado. Isso é seriedade.
Outro exemplo: eu trabalhava no consulado do Brasil fazia uns anos e um dia me ligou a coordenadora de eventos de uma instituição cultural em Stuttgart, que eu conhecia de outras oportunidades. Estavam organizando um evento em que grupos culturais sul-americanos se apresentariam e haveria palestras de experts sobre diversos países. Ela queria que o cônsul fizesse uma palestra sobre o Brasil, sua história, política, economia. Ele não podia, então ela perguntou se eu não poderia “dar uma forcinha”. Nem pensei duas vezes, agradeci e disse que não. Ela ficou indignada, achando que eu não queria colaborar. Não adiantou eu explicar que não entendo nada de política e economia, que a palestra ia ser em alemão e eu não me sentia segura para aquilo, que de forma alguma eu podia comparecer como representante oficial do consulado para vender mal o peixe do meu país e era melhor ela procurar um verdadeiro expert. O comentário final dela foi que “se fosse eu, me sentiria honrada e a gente sempre pode falar qualquer coisa sobre o próprio país”. Lamento, mas falar qualquer coisa não é sério.
Último exemplo: um dia, uma amiga, querendo me “dar uma forcinha”, perguntou se eu não queria ser a intérprete de um congresso acadêmico. Os organizadores já tinham feito contato com um intérprete, mas o colega era caro, eu podia me apresentar e oferecer um preço menor. Disse que não faço simultânea, então não dava, e achei melhor nem comentar a questão do “preço menor”. Ela ainda insistiu que eu tenho experiência, seria uma boa oportunidade. Aí expliquei que simultânea é outra coisa, eu não domino a técnica e se seu aceitasse, ia queimar meu filme e o deles, fazendo um serviço mal feito. Era melhor ela contratar o colega. A resposta foi “que pena, mas você tem razão”. Isso é sério.
Pode parecer que eu sempre faço a coisa certa. Não é verdade. De vez em quando faço besteira e bato com a cabeça na parede novamente, para não esquecer que errar é um direito de todos. Mas é por isso mesmo que vivo pensando nessas coisas e tentando desviar das paredes. Dor de cabeça atrapalha a produção!
Bete, aquela tua primeira tradução foi o livro do Antônio? Que saudades!
Isso aí, Flávia! Para você ver como os amigos são importantes na vida da gente. Saudades mesmo!
Bete, outro dia um rapaz apareceu no meu escritório com um manual de instruções de uma “câmera espiã” e pediu para eu “dar uma olhadinha” . Por que será que sempre usam diminutivos quando se referem a um trabalho altamente especializado como o de tradução? Sempre é “uma forcinha”, “uma olhadinha”, “uma lidinha”, e as pessoas parecem nunca se sentir na obrigação de pagar por tal serviço. É como aquele segundo primo de um médico que quer ser consultado no almoço de família, de graça. Quem sabe um dia a cultura de que um serviço não é trabalho acabe. Eu, sinceramente, não dou mais “olhadinha” nenhuma: abro o jogo na hora e digo quanto cobro por palavra (de acordo com a tabela do Sintra). Abraços! (adoro teu blog)