Disse isso para a Bete hoje, mas já venho pensando nisso faz um tempo. Se escrevêssemos os conteúdos das nossas longas conversas por FaceTime ou Skype, publicaríamos vários artigos por mês. O conteúdo desse artigo é fruto de uma dessas conversas.
Quem trabalha para agências de tradução no exterior e no país se depara com vários tipos de problemas. Um desses problemas é a questão da santa e toda poderosa TM fornecida pelo cliente.
Na opinião do cliente, a sua santa TM contém todo o conhecimento necessário para a produção da melhor tradução já feita até hoje. Veja bem, na opinião dele. É claro que existem TMs muito boas, já tive o prazer de trabalhar com várias e aprendi muito com esses trabalhos, mas também tem “aquelas”…
É sempre uma faca de dois legumes. Num certo momento da tradução, vem aquele termo “cabeludo”, “mucho loco” e que parece mais um alienígena do que um termo técnico. Como num filme, vem à sua mente aquela cena que está para acontecer. Você escrevendo para o cliente – “Olha, tem esse termo aqui assim, assado, não dá para usar porque não está correto” e mesmo depois de argumentar muito, você vai escutar aquela famosa frase dita por vários coordenadores como se tivessem ensaiado para uma peça de teatro – “os tradutores devem usar os termos contidos na TM”. Pronto! E agora? Compactuar ou não com o crime?
Não compactuar com o crime diante de uma negativa de modificação na tradução pronta do cliente, é dizer que não vou fazer o trabalho e ele que procure outro tradutor que aceite usar aquela TM. Mas como fica a questão das contas para pagar? Nem sempre é possível fazer isso e somos obrigados a compactuar com essa situação. É algo realmente difícil…
Também existem os clientes flexíveis, que permitem modificar a tradução na TM, e contribuem para evitar um infarto no seu miocárdio. Você não precisa mais imaginar o seu nome numa tradução cheia de erros. “E se alguém ver isso?! GOTT!!!”
Grande parte dos leitores desse blog é formada por tradutores profissionais e já devem ter passado por isso. Aqueles que não são ou serão num futuro próximo, aguardem, a sua vez chegará e não estou jogando praga em ninguém. É fato, vai acontecer com você também.
Trabalhar com clientes europeus é uma situação muito peculiar, bem diferente da de nossos colegas no Brasil cujos clientes sabem português. Cabe a nós educar o cliente e convencê-lo de que existem diferenças entre o português continental e o brasileiro. E educá-lo sobre as diferenças entre tradutor bom e tradutor-mais-ou-menos (convencê-lo disso já é um pouco mais difícil, principalmente quando o Seu-mais-ou-menos prestou serviço pra ele ;-). Às vezes dá certo, às vezes o cliente sai correndo. Já perdi oportunidades de trabalho porque o cliente não concordou com o meu ponto de vista e a minha proposta (em alguns casos foi exigência) de não conceder descontos aos matches. Mas já aconteceu de o cliente ficar admirado com os meus argumentos. Em duas ocasiões, enviei uma tabelinha da tradução comparando o “está” com o “deveria estar”, com alguns exemplos da TM. O cliente se convenceu! Enfim, “hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás.”
Compactuar? Só mesmo se não tiver jeito. Mas até chegar a este ponto, ética, ética e ética!
Um tema relacionado foi discutido no grupo do FB anteontem e ontem. Um dos comentários pertinentes foi o de a tradução levar ou não a assinatura do tradutor (é o caso, conforme o tipo de publicação). Um tradutor que participou da discussão contou o caso de um tradutor que exigiu que o cliente não colocasse o nome dele na tradução, ameaçando processá-lo. Esse é o que o Vaqueiro chamaria de tampa de Crush!!!
Já vi que vou ter que entrar mesmo para o FB, só para poder participar desse grupo! 🙂
Acho que esse tema assombra a vida de todo tradutor. Eu entendo perfeitamente o André, quem nunca passou por situações semelhantes? E também concordo com tudinho que o Marcos escreveu. Só que, na minha opinião, tem dois mundos para o tradutor lá fora: Shangri-la, onde você e o cliente buscam o melhor resultado, e o País das Maravilhas da Alice, onde tudo é lindo, mas parece funcionar ao contrário e “melhor resultado” pode ser uma coisa totalmente diferente do que você imaginava.
No mês passado, eu estive em Shangri-la: um cliente de longa data me passou um projeto que veio com partes traduzidas anteriormente, sabe-se lá por quem. O cliente final queria que seguíssemos a TM, que tinha coisas comprovadamente erradas. Eu fiz meu dever de casa, procurei referências, até aulas no youtube achei, provei por A+B que não podia estar certo. Concordaram e mandaram revisar a coisa toda.
Mas, no País das Maravilhas, eu tenho um cliente que vem fazendo projetos para um cliente final há mais de 10 anos. Ao longos desses anos, a TM desse cliente final passou pela mão de todo mundo, desde o coelho apressado até o ovinho indeciso em cima do muro. Então você encontra de tudo ali, alguns termos têm 3 ou 4 traduções diferentes, uma verdadeira colcha de retalhos. Em Shangri-la, já teriam dado um jeito nisso há muito tempo. Mas no País das Maravilhas, a Rainha de Copas só quer saber de uma coisa: vai custar quanto? Em geral, é mais fácil cabeças rolarem do que a TM ser revisada.
E quanto à questão de assinar sua tradução, sou totalmente a favor, pelo menos poderia contribuir para uma maior responsabilidade. Mas não acho que isso resolveria o problema. Primeiro porque muita gente assinaria com orgulho os próprios absurdos, sem nem perceber o que são. Segundo porque às vezes você entrega a tradução certo de que fez tudo direitinho e depois pode acontecer que o resultado publicado não seja bem aquilo que você fez (experiência própria). Isso também não é ético, mas desse negócio de ética a Rainha de Copas nunca quis saber.
Acho que tudo isso se resume em duas coisas que todo tradutor precisaria para trabalhar em paz e fazer um serviço decente: tempo e dinheiro suficientes.
Kkkkkk … tou me rachando de rir com a Alice e seus amiguinhos…
Minha observação sobre a assinatura, de novo:
Um tradutor que participou da discussão contou o caso de um tradutor que exigiu que o cliente **não** colocasse o nome dele na tradução, ameaçando processá-lo.
Pelo seu comentário, acho que você acabou não percebendo o “não” ali no meio. Foi um desses casos em que a tradução leva, sim, o nome do tradutor (como todos sabemos, na área de manuais, documentação técnica e empresarial quase sempre não leva). O cliente não concordou com algumas sugestões do tradutor e fez à sua maneira. O tradutor ameaçou processar o cliente se ele colocasse o seu nome no trabalho. Acho muito justo!
Isso, Marcos, acho que deixei a impressão de que estava argumentando, mas estava concordando. Foi exatamente como eu me senti no caso acima. Só que eles me fizeram o “favor de esquecer” meu nome (talking about ethics…).