A língua alemã tem fama de ser exata. O mito de que “só é possível filosofar em alemão” continua assombrando muita gente por aí, não só na canção do Caetano. De minha parte, estou convencida de que nem mesmo a matemática é tão exata quanto parece, 2 + 2 nem sempre será 4, que dirá o alemão expressar tudo sem deixar sombra de dúvida. Querem um exemplo?
No lugar onde eu trabalho, há uma pequena cozinha no andar, com geladeira, pia, máquina de café e a infalível lata de lixo com coleta seletiva. Nela , há três compartimentos: um para embalagens (Verpackungen), outro para lixo orgânico (Biomüll) e um que leva o nome aparentemente bem prático de Restmüll, o que seria o “lixo restante”, traduzindo literalmente. Parece lógico, não é? Mas vejam só: todos os dias, para colocar o meu motor em funcionamento, minha primeira providência é tomar um café, um expresso duplo, para ser mais exata. Quando a máquina termina de encher a xícara com o meu combustível, eu abro um saquinho de açúcar e jogo metade do conteúdo na xícara. Na hora de abrir a lata de lixo e jogar fora o resto, vem a dúvida: para qual compartimento vai o saquinho? Jogo o resto do açúcar no lixo orgânico e o saquinho nas embalagens? Ou jogo tudo no “resto de lixo”?
Pode parecer banal, mas é um desafio começar o dia com uma pergunta dessas, antes mesmo do primeiro gole de café! E acho que não sou a única, pois ao abrir a lata, sempre encontro os saquinhos azuis espalhados por todos os compartimentos. Afinal, o saquinho é embalagem, portanto, não deveria estar no “resto”. Mas se eu jogo apenas o açúcar no Biomüll, a menina que faz a limpeza (a propósito, uma brasileira) certamente vai xingar a pobre da minha mãe, que não tem nada a ver com isso, por causa do fundo caramelizado que se cria na lata de lixo. Pois, como todo mundo sabe, os alemães são muito consequentes (outro mito, mas ainda não virou música), por isso nossa lata de lixo seletiva não é forrada com sacos plásticos, senão não seria assim tão seletiva.
O que nos leva de volta a essa língua tão exata: o que vem a ser exatamente “Restmüll”? Existem verdadeiras enciclopédias sobre a coleta de lixo na Alemanha e há nomes para tudo. Oficialmente, “Restmüll” é tudo o que não pode ser reciclado. Mas as listas de exemplos citados em vários sites de prefeituras e órgãos público, em vez de esclarecer, confundem ainda mais. Uma delas cita, por exemplo, produtos têxteis sujos. Ora, a máquina de lavar não recicla isso?
Eu resolvi simplificar minha vida, pelo menos nesse aspecto, e interpreto Restmüll simplesmente como “resto”, tudo o que sobra vai para ali. Não é embalagem? Não é orgânico? Restmüll! É um pouquinho de cada um? Restmüll! É uma coisa na qual ninguém pensou quando inventaram a lata de lixo maquiavélica? Restmüll! Confesso que às vezes tenho um receio paranóico de ser pega jogando o saquinho no lugar errado. Mas, querem saber de uma coisa? Se um dia reclamarem, vou começar uma discussão sobre o verdadeiro significado da palavra “resto” e sou capaz de apostar que ficaremos ali olhando pensativos para aquela lata de lixo, sem resposta definitiva para as grandes questões do universo. E se os alemães querem mesmo tudo nos lugares certos, eles que inventem uma palavra melhor. Afinal, essa língua é ou não é tão exata?
PS: Falando em maneiras complicadas de começar o dia na Alemanha, a Ligia Fascioni escreveu há tempos um artigo no seu blog que vale a pena ler. Passe lá, clicando aqui.